Um mal asmático levou-me à porta do “Vou e não sei se volto porque apenas Jesus ressuscitou ainda que tal afirmação não seja consensual e para cúmulo do desencontro de interesses estamos no advento e parece 6ª feira santa.”
Não se percebeu bem o motivo, o certo é que foi por um triz, cheguei à urgência em paragem respiratória. Sem dourar a pílula, quase morri, “mais um bocadinho e isto corria mal!” como me disseram.
Tenho asma, depois de velha; provavelmente insinuou-se durante a minha segunda gravidez mas desde que diagnosticada há menos de dois anos nunca mais me tinha dado grande sinal da sua pertença à minha pessoa.
Quando a descobri tive uns minutos de infelicidade. O bem que mais prezo desde que me lembro de mim é a saúde e peço-o sempre em cada início de ano e ao longo dele. Sou médica porque detesto doenças e logo tinha de me calhar uma crónica. Sou psiquiatra e logo me tinha de calhar uma psicossomática.
Recordo a pneumologista que leu o meu pensamento sem me conhecer e me ordenou que parasse com ideias da psiquiatria porque “gravidez + rinite alérgica + dois anos e meio sempre infectada + um otorrinolaringologista que insistia que era do nariz sem tratar dos fenómenos de broncospasmo que nem eu dava conta nem ele sequer questionava + racionalizações como “É natural que estejas cansada, tens duas miúdas pequenas, trabalhas muito…” que não me satisfaziam porque aquele cansaço me dizia que algo de patológico se passava = PROCESSO INSTALADO”.
Resumindo, Se me tivessem tratado como eu pedi, sugerindo vezes sem conta recorrer a um pneumologista porque não podia ser normal aquela sensação de fadiga extrema e permanente com infecções recorrentes numa periodicidade mensal e nos últimos mais de 3 meses pré-diagnóstico sem intervalo livre, não havia asma.
Com “Se’s” fazia-se um mundo novo.
Assim, a doença chegou, gostou, e ficou.
Decidi então que a asma era minha, tão minha como o fígado, um olho, o cerebelo ou um artelho. Tratá-la-ia pois como todo o amor e carinho, seria a sua melhor amiga, ela não se sentiria rejeitada e viveria em equilíbrio dentro de mim e comigo. E assim foi. Rapidamente melhorei e sem medicação fiquei. E o cansaço desapareceu. Passei a cansar-me como as pessoas normais, como antes, como me lembrava da vida.
A quando do diagnóstico, no final de Fevereiro de 2008, descobri que ter vocação para vítima pode dar jeito, por vezes, e aquela teria sido uma delas porque se tivesse puxado mais pelo meu mártir escondido e rejeitado teria pedido ajuda mais cedo.
No entanto, dou-me conta que repeti a proeza, provavelmente por esquecimento desse ensinamento, Freud dizia que quem não recorda está condenado a repetir, não que eu adore o Mestre Sigmund mas o certo é que sábado, dia 19 de Dezembro de 2009, aos 39 anos e 5 dias, idade mais que suficiente para ter juízo, mais uma vez, com esta mania de psiquiatra, achei que não devia ser assim tão grave e que o meu mal era estar ansiosa, se bem que ao deitar eu estava longe de tal emoção. Uma amiga, também psiquiatra, dizia-me a esse propósito “ Há pessoas que estão a ter um ataque de pânico e acham que estão a morrer. Tu estás a morrer e achas que estás a ter um ataque de pânico”. Sendo que nunca tive ataques de pânico, devo ser mesmo é parva.
Este Outono, pela primeira vez comecei a respirar contra uma resistência, cada vez maior, e apesar dos ajustes de medicação cada vez mais elevados, dois dias depois do meu aniversário tive a primeira crise e mais outros três a segunda que quase foi a última.
A idade traz muitas coisas boas e menos boas. Uma das que se inclui na segunda categoria é o confronto permanente com a nossa fragilidade e mortalidade.
São amigos que adoecem, amigos de amigos, próximos que morrem, próximos de próximos, todas as semanas recebemos notícias mais ou menos chegadas. São exames de rotina que aumentam em número e frequência, são suspeitas desta ou daquela doença, a nossa mortalidade paira por ali.
Mas é algo num plano não imediato, está lá, como sempre esteve, vai acontecer um dia, lá mais à frente.
Por oposição, o que se passou naquele momento daquela noite de sábado foi “Eu vou morrer, agora.”, o plano não podia ser mais imediato e não havia lá mais à frente.
E não vi túnel, nem luzes nem a minha vida em retrospectiva. Vi tudo preto, deixei de conseguir ligar o pensamento ao discurso não percebendo como é que as palavras estavam a sair, deixei de conseguir falar, de sentir as mão e o equilíbrio vacilou. O ar não entrava, não descia, nada, tudo fechado.
Não senti tranquilidade nem anestesia, senti angústia que fisicamente não é possível dissociar da falta de ar.
Não pensei que queria viver, como me disse a minha mãe depois, só conseguia pensar que não queria morrer, com 39 anos e 5 dias, e deixar as minhas filhas e o meu marido. O meu cérebro baralhou-se com este "Não". O cérebro funciona melhor com ordens no positivo e angustiou-me ainda mais.
Não dei mais valor à vida porque o dou todos os dias e o penso constantemente, no privilégio que é viver como vivo, onde vivo, com quem vivo, ter a minha vida.
Não sou medrosa, antes pelo contrário, e nunca tinha tido tanto medo. Assustei-me, muito.
Passaram-me pela cabeça todos os doentes com mal asmático que vi morrer em bancos de urgência e, apesar de me assegurarem que tudo ia melhorar, também me preveniram que há bastantes casos fatais em médicos porque acham sempre que se pode esperar e chegam tarde demais. Sou mesmo parva e pelos vistos outros parvos me acompanham.
Não sou dramática em doses visíveis, sou mais Joy to the World e absolutamente optimista e, no entanto, produzi todo um filme de despedida, percebida naquele momento, dos meus amigos e família nos dias que antecederam a crise.
Porque comemorei em grande 39 anos? Porque não chegaria aos 40, claro.
Lembrei-me de frases que tinha ouvido nessa tarde a propósito de secar contas através de levantamentos em caixas automáticas como “As pessoas morrem sempre ao fim-de-semana.”.
Lembrei-me de pendentes que quero resolver e que não poderia fazê-lo.
Lembrei-me da minha mãe e não sei porque carga de água ela estava sempre vestida de branco.
Lembrei-me do Xavier que é o melhor homem que eu conheço.
Lembrei-me da conversa ao deitar com a Mathilde, de uma série de coisas que lhe disse pela primeira vez, pareciam recados.
Lembrei-me que não me tinha despedido da Manon da mesma maneira.
E tudo me parecia triste e derradeiro.
Por mais que tentasse afastar estes pensamentos, eles não iam embora. Nem a dificuldade respiratória.
Foram 3 dias de internamento no SO de agudos a secar lágrimas porque o choro agravava a dispneia até poder soluçar sem que tal acontecesse.
Li um livro daqueles espessos durante o último dia, “Quem quer ser bilionário” onde Ram Mohamed Thomas imaginava a mãe vestida de branco e espantei-me.
Sonhei com pinguins a fazer acrobacias no ar, a planar todos agarrados uns aos outros em círculos num fundo laranja de pôr-do-sol e quando cheguei a casa, no dia seguinte tinha na caixa do correio uma agenda cor-de-laranja 2010 com os mesmos pinguins símbolo de um antidepressivo, a vida tem realmente muita graça, ainda bem que não morri.
Saí de lá com hematomas e equimoses das múltiplas picadas que me transformaram num regador e que agora vão desaparecendo. No primeiro dia nem as senti.
Bati muito depressa porque os cocktails de aerossóis aceleravam-me o coração.
Perdi mais de 3kg apesar dos corticóides.
Ganhei mais cabelos brancos.
Decidi que me vou ralar ainda menos com muitas coisas.
Tive 8 tubos ligados a mim para múltiplas funções, de registo e de porta de acesso.
Escrevi muito, no hospital vivem-se e testemunham-se cenas espantosas. Um dia passo tudo a limpo, do caderno escrito a carvão para um formato digital e chamo-lhe “O dia em que sobrevivi”.
Nunca tinha estado numa maca com doentes muito mal à minha volta. Não me incomodou. Ter trabalhado entre as macas deixa defesas.
Não tinha saudades. Não tenho saudades.
Não me faz falta, o hospital.
Nem um assado destes.
Quase morri.
Mas voltei a tempo do Natal, para pôr a mesa, porque este ano comprei enfeites para a mesa.
Foi um bom Natal, com as pequenas felizes e os grandes aliviados e felizes também.
Estou ainda muito longe da normalidade e pouco serena pois as melhoras são parcas.
Tenho tempo, espero, e paciência, agora que já pus a mesa de Natal e que me descanso pela casa, sem saber bem quando recomeçará a vida como me lembro dela e porque me aconselharam, nem me atreveria agora, a não viajar e lá anulámos a nossa ida de fim de ano que duraria um bela semana de novo no vale dos castelos com ida à cidade das luzes, ver precisamente as luzes de Natal. Tenho muita pena, sobretudo pelas meninas que estavam entusiasmadíssimas com a viagem.
Tenho 10 medicamentos diferentes que vou fazendo ao longo dos dias.
Durmo com 4 almofadas e estou a aprender a respirar com ginástica.
Pretendo ir a todas. Homeopatia, acupunctura, massagens e à bruxa.
Apanhei o susto da minha vida.
Mas voltei a tempo do Natal, vivinha de Vasconcelos, a respirar, ainda que mal, e apta a pôr, ainda que devagar, a mesa do Natal porque este ano comprei enfeites para a mesa.
A Manon teve febre nos 3 dias em que não estive.
O Xav adoeceu com uma gripe que ele descrevia como estar na auto-estrada toda a noite com camiões a rolarem por cima dele.
Pôs a minha aliança no dedo mindinho ao lado da dele e dormiu do meu lado da cama.
A Mathilde gritou-me saudades e não disse mais nada na tarde do meu regresso. Na manhã seguinte foi enfiar-se na minha cama e confidenciou-me que teve medo que eu não voltasse mais porque achava que eu tinha morrido. Agarrou-se a mim e desatou a chorar.
Menino Jesus, eu este Natal, queria um presente diferente, diferente...
O que eu quero é que tu me permitas viver saudável com o meu Xavier também saudável e ver as minhas filhas crescerem, muito, sempre saudáveis, terem filhos e eles crescerem, muito, sempre saudáveis, e se puder ainda ver mais outra geração a seguir olha!, era um brinde do bolo Rei que garantidamente valorizarei e guardarei com cuidado, como sempre.
Não me importa com muito mais, como tu sabes aliás, o que eu quero, sem dúvidas, é que as minhas filhas e o meu amor estejam bem e que eu possa estar igualmente bem e com eles.
Lembras-te quando a Mathilde estava para nascer e que eu pedia apenas que ela tivesse saúde? E depois a Manon também? E que quando converso com o meu Anjinho da Guarda falo sempre disso e mando recados aos anjinhos da guarda delas e do Xav?
É pois isso que eu quero este Natal.
Não quero ver o meu marido metaforicamente atropelado por camiões, a Manon com febres vespertinas quando a mãe não volta e a Mathilde aflita mesmo que a explicação tenha sido suave.
Por isso, Menino Jesus, eu este Natal queria um presente diferente, diferente…
Queria o que o Ano Novo fosse cheio de saúde, pode ser?